Lembro-me que tinha uma máquina de escrever quando era pequena. Era azul e amarela com teclas vermelhas. Não sei que idade tinha quando a recebi, nem guardo memórias de alguma carta escrita na dita máquina. Lembro-me de ser chato de usar. Bastava um erro para arruinar toda uma folha. Sim, porque quando escrevemos à máquina também procuramos algum tipo de perfeição. Só tenho memória disso. De ser chato. O que aconteceu à máquina? Onde a guardava? Quanto a usei? Não sei. Talvez pergunte aos meus pais. Talvez eles façam ideia.
Quem queres iludir? É óbvio que eles não sabem. O meu pai sempre alheio à realidade. Via-nos, mas nunca olhou para nós. Para mim e para o meu irmão. Nós estávamos lá. Presentes naquela casa, mas sem sermos vistos. Fazíamos coisas todos juntos, ríamos e fortalecíamos ligações em momentos esporádicos a caminho de Viseu, mas o essencial de cada um de nós... Não, isso não. Isso ele nunca quis ver. Falta de capacidade? Atenção? Preocupações com êxitos académicos, a correcta conjugação de verbos, a falta de plural no verbo haver, a resposta exageradamente detalhada a todas as perguntas, a possível oferta de vinte CD's caso adivinhássemos o artista de determinada música.... O meu pai é uma personagem. Disse-lhe hoje que um dia podia escrever um livro sobre ele. Já é o segundo livro que digo querer escrever. O livro com a história da Z. e um livro sobre o meu pai. Enfim. Pais.
Os meus pais fizeram tantas coisas mal, mas outras tantas, bem. Havia uma casa, havia tudo o que nós queríamos, havia pouco controlo. Nos anos mais complicados de um adolescente e mesmo na pós-adolescência, quando vivemos um momento crucial de descoberta de quem somos, do quem e o que queremos ser. Um momento em que a orientação certa pode ter um impacto forte no futuro. Eu e o meu irmão não tivemos orientação. Tivemos de nos orientar sozinhos. A liberdade imposta e a cegueira dos nossos pais foram-nos deixando ir. E nós fomos e o meu irmão soube fazer as coisas, ou melhor, ter a noção do que tinha de fazer, melhor do que eu. Eu andei perdida durante tanto tempo e ninguém me deu um estalo na cara. O estalo foi-me dado pelo tempo, pela vida. Acordei, comecei a mexer-me e a fazer o que tinha de fazer para me libertar totalmente, para me transformar em mim. Perdi muito tempo. Será que teria perdida todo esse tempo se tivesse recebido a tal orientação e um bocado de tough love? Não sei. Não é importante agora. Agora está tudo bem.
Agora guardam-se memórias, tiram-se conclusões sobre as razões de sermos como somos e, de certa maneira, culpa-se os pais. Eu nos os quero culpar. Sempre foram duas crianças a lidar com a vida e será assim para sempre. Se um dia tiver filhos, sei exactamente como não vou ser com eles, que atitudes não vou ter e como quero lidar com os desafios que educar alguém impõe. É difícil. É muito mais difícil do que se imagina e, independentemente dos livros escritos, ninguém sabe bem o que está a fazer. Por isso digo, sei o que não vou fazer. O resto é surpresa. É importante que a pessoa com quem escolhemos fazer bebés tenha ideias e ideais parecidos com os nossos, para que se trabalhe em equipa. Acho que em equipa tudo vale a pena. Se os pais souberem conversar, discordar e rir sobre o ser que estão a ajudar a crescer, tudo se torna mais fácil e fluído. Se um dia tiver bebés, gostava que fosse com uma pessoa que queira também formar essa equipa comigo, que saiba gozar com o puto e com as nossas falhas, que veja as coisas a sério, mas também a brincar. Isto é tudo um jogo onde não se conhece o final. Que se aproveitem bem os desafios.
Comecei a escrever sobre a minha máquina de escrever, não foi? Uma coisa leva à outra e de repente estamos numa outra Ebene de ideias e assim, sem saber ler nem escrever, a cada dia que passa consigo explicar melhor a minha tatuagem.