segunda-feira, março 13, 2023

Era uma vez uma Hera

A miúda nunca gostou de ser o centro das atenções. Desde muito pequena que se lembra de reunir esforços para se esquivar de situações que a expusessem mais do que o necessário para ser socialmente aceitável. Foi crescendo com a ideia que possuía uma falta de capacidade para se relacionar com as pessoas de uma forma normal. Se a miúda visse alguém que conhecia com distância suficiente para não se aperceberem da presença dela, procedia logo à fuga da possível ocorrência de encontro. Perdeu a conta de quantas fugas foi protagonista nos últimos anos. As conversas banais, a falta de assunto e a obrigatória cordialidade dos encontros de circunstância sempre lhe causaram alguma ansiedade. Se um encontro é infrutífero, para quê tê-lo? Para quê fingir interesse pela vida ou bem-estar da pessoa aleatória que se encontra, só para respeitarmos o fluxo natural de interações socialmente aceitáveis? 

Encontramos a miúda algures em Outubro, algures perdida pela sua cidade enquanto estas e outras ideias lhe preenchem a cabeça. Passear pela cidade sozinha tem-se tornado um hábito cada vez mais apreciado. Descobrir cantos e recantos que não conhece ainda. Perder-se por caminhos que achava já ter percorrido e acabar por ir parar a uma rua familiar sem saber como. Entendem-se geografias novas, formam-se mapas que amanhã vai esquecer. 

Passa por um pequeno café e pára. O café não tinha muito mais do que um balcão e umas  mesas quadradas. As cadeiras captaram a sua atenção. Eram exatamente iguais a uma cadeira que havia em casa da sua avó. Nunca gostou de se sentar nessa cadeira, era dura e desconfortável - ferro preto, tampo e costas de um verde que não sabe descrever por palavras. A cadeira era raramente usada. Encontrava-se na entrada da casa, encostada a um canto perto da despensa. Aquela zona da casa tinha  um cheiro característico. Ela sempre o qualificou pela presença das areias do gato, mas o cheiro subsistiu mesmo anos após a sua morte. Nunca gostou do cheiro, mas neste momento estava a senti-lo ao olhar para aquelas cadeiras verdes. Sente o cheiro e sente-se pequena, sente o cheiro e afoga-se em saudades. 

Agora estava em frente ao portão verde da casa da sua avó. A hera verde que percorria as paredes e a estrutura de metal que se formava em arco até a entrada de casa sempre deu um aspecto majestoso àquela passagem. Se nos déssemos ao trabalho de reparar, víamos. A miúda nunca contou a ninguém, mas várias vezes se imaginou a percorrer aquele corredor de flores vestida de branco. O mesmo corredor onde gravou uma das suas primeiras memórias de infância - o caixão do seu avô a ser levado para fora de casa, em direção ao portão verde (que na altura era branco). Tão depressa um cenário pode representar vida e esperança, como a morte e o momento do adeus. Dualidade maravilhosa. 

Maravilha é descobrir que Hera, rainha do Olimpo, era a deusa protetora do casamento, das mulheres e da família. Maravilha é lembrar que a hera verde sempre esteve presente à sua volta. Nos almoços de família que se prolongavam até à noite, nas corridas e brincadeiras de todos os miúdos que foram crescendo, nos banhos de sol na pequena piscina, nos medos disparatados dos cães que foram indo e vindo, nos sorrisos e gargalhadas. No choro afundado em abraços fortes no dia em que a avó da miúda morreu. 

Hoje a casa já não existe. A hera desapareceu com a sua demolição. O terreno é ocupado por um quadrado de madeira sem vida. É difícil compreender estas passagens de tempo, estas mudanças que ocorrem e que nos vão levando ao sabor de uma maré invisível até outros hábitos, até outras casas, até a um café que tem cadeiras iguais às de casa das nossas avós. 

A miúda tem aprendido a encarar a passagem do tempo e a consequente morte de rituais passados com mais leveza, mas não consegue deixar de ficar maravilhada com o poder dos gatilhos que vamos encontrado pela vida e que nos levam em viagens a momentos já vividos. Tempos que foram bons e que já não voltam, mas que guardamos por cá até que um dia a memória nos comece a falhar. 

Era uma vez um lugar. Era uma vez um espaço que juntava uma família. Era uma vez um sítio umbilical. 

Era uma vez uma miúda que se viu Hera e deu novo sentido ao universo. 

Sem comentários:

Enviar um comentário